terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Tradutores da Bíblia: Áquila (Século II d.C.)



A primeira tradução que os judeus fizeram do Antigo Testamento, com a exceção das paráfrases do aramaico, foi a chamada tradução dos 70 ou 72, para ser mais exatos, eruditos judeus fizeram do hebraico para o grego, na cidade egípcia de Alexandria, no século III a. C.  sob o reinado do Faraó Ptolomeu Filadelfo (285-247 a. C.). Ela chegou a ser conhecida como Septuaginta (LXX). Ao redor dessa tradução se criou, desde cedo, toda uma tradição a respeito do modo miraculoso pelo qual ela foi produzida. Irineu relata em sua obra Contra as Heresias o seguinte:
Antes dos romanos estabelecerem sua administração, no tempo que os macedônios ainda possuíam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, desejando enriquecer sua biblioteca, fundada em Alexandria, com os melhores escritos procedentes de toda parte, pediu aos habitantes de Jerusalém que traduzissem suas Escrituras para o grego. Ainda subjugados pelos macedônios, os judeus enviaram setenta anciãos, os mais habilidosos nas Escrituras e no conhecimento de ambas línguas, cumprindo assim o propósito de Deus. Temendo que os judeus pudessem conspirar ocultando em sua tradução o verdadeiro sentido das Escrituras, Ptolomeu os separou e lhes ordenou que suas traduções fossem iguais. Quando eles compareceram diante do soberano egípcio e compararam suas versões, Deus foi glorificado e a Escritura foi reconhecida como divina, porque todas diziam as mesmas coisas com as mesmas palavras do princípio ao fim. Isso levou até mesmo os pagãos a reconhecerem que as Escrituras haviam sido traduzidas pela inspiração de Deus.
A LXX desfrutou o reconhecimento oficial da comunidade judaica de Alexandria e os escritores posteriores como Filo e Flávio Josefo a citaram em suas obras. Por causa da Diáspora,[1] muitos judeus passaram a habitar muito distante da terra dos seus antepassados, com isso foram aos poucos perdendo o conhecimento do hebraico. Com isso a LXX chegou a ocupar um papel vital para a sobrevivência de tais comunidades, uma vez que a língua grega tornou-se a língua materna desses grupos.
Além disso, a LXX preparou o terreno para os missionários cristãos que vieram anos depois, pois ela se tornou a versão dos primeiros anos do cristianismo, aquela usada pela igreja primitiva. De fato, as citações do Antigo Testamento encontradas no Novo Testamento procedem em grande parte da LXX. [Na direita, temos o texto de II Reis em um manuscrito palimpseto da LXX de Áquila]
Entretanto, pouco depois de seu uso pelos cristãos, a LXX começou a perder prestígio entre os judeus. Várias razões contribuíram com isso: em primeiro lugar, nas disputas teológicas entre cristãos y judeus, certas passagens da LXX pareciam apoiar a opinião cristã. Talvez a mais famosa delas seja a de Isaías 7:14, na qual a LXX traduz o hebraico 'almah como virgem, confirmando assim a crença cristã no nascimento virginal de Jesus. Outra razão para o abandono da LXX pelos judeus foi o fechamento cânon do Antigo Testamento na Palestina perto do final do século I d.C. O cânon palestinense não concordava exatamente com o cânon da LXX. Havia certos livros neste último, tais como Macabeus, Judite, Tobias, Baruque, Sabedoria, Eclesiástico, Salmos de Salomão e outras porções, que foram no concílio de Jâmnia, onde o cânon judaico foi estabelecido.
Junto a isso, devido à grande difusão do cristianismo, no seio do judaísmo se desenvolveu, nos primeiros séculos da era cristã, um movimento muito conservador. Sob a influência do rabino Akiba (século II d. C.) nasce uma escola de interpretação rabínica que destacava o valor de cada letra no texto sagrado, sendo estritamente literais quanto ao uso das palavras. Para esta escola, a LXX parece uma tradução muito livre.
Devido a todas estas razões, é necessária uma nova tradução do Antigo Testamento para o grego. É nessa hora que Áquila entra em cena. Pouco se sabe sobre sua vida. Jerônimo diz que era um prosélito judeu, natural do Ponto. Teria militado nas fileiras cristãs até retornar novamente para o judaísmo por causa da influência do rabino Akiba, (ainda que o Talmude de Jerusalém, Megillah 71a, relacione-o aos Rabinos Eliezer ben Hircano e Yehosua) cujos métodos de interpretação seriam usados por Áquila ao fazer sua tradução para o grego.
Como era de supor, a tradução de Áquila era muito literal, caindo, às vezes na ingenuidade, ainda que uma ingenuidade não isenta de mérito por causa de sua coerência, fruto de seus rígidos princípios de tradução. Naturalmente, a tradução de Áquila não desfrutou da simpatia dos cristãos, os quais viram que a tradução da palavra 'almah de Isaías 7:14 por donzela em lugar de virgem. Jerônimo, certa vez, zomba das peculiaridades da tradução de Áquila, por exemplo em Gênesis 1:1, ele traduz assim: “No princípio criou Deus com os céus e com a terra”. Por outro lado, Áquila substituiu os termos que tinha adquirido conotações cristãs por outros. Por exemplo, a palavra mãšîah = Christós, "Messias", ele a substituí por eleîmmenos. Por tudo isso, os judeus têm em grande estima o trabalho de Áquila, usando-a durante séculos em sua liturgia. Somente quando o estudo do texto hebraico original começa a ser revalorizado, durante o Império Bizantino, é que a tradução de Áquila perde a autonomia.
Cem anos mais tarde do aparecimento da tradução de Áquila, que ocorreu durante o governo do já citado Imperador Adriano no ano 130 d. C., Orígenes, o grande erudito cristão da escola de Alexandria, começa a dedicar boa parte de sua vida ao estudo do texto do Antigo Testamento, comparando as distintas versões que ele tem em mãos. Para isso, ele comporá uma de suas principais obras chamada Hexapla, que contém o texto sagrado em seis colunas paralelas assim divididas: o texto hebraico em caracteres hebraicas, o texto hebraico em caracteres gregos, a LXX, na tradução de Áquila, a de Símaco e a de Teodócio. Desta maneira a tradução de Áquila entra no campo de estudo dos eruditos cristãos por intermédio de Orígenes.
Epifânio (c. 315—403) preservou em seus escritos a tradição cristã popular que faz de Áquila parente do Imperador romano Adriano. Este o teria contratado para reedificar Jerusalém, onde converteu-se ao cristianismo. Depois regressou ao judaísmo por ser repreendido devido à prática da astrologia.[Abaixo temos o texto de Gênesis 1:1-8 da Septuaginta]




Traduzido por Marcos Paulo da Silva Soares.
Usado com permissão


[1] A dispersão dos judeus, no decorrer dos séculos. No caso, refere-se a do período conhecido como pós-exílico e imediatamente anterior ao tempo do Novo Testamento.

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